Talvez o ser–humano não tenha alcançado, até o momento, um nível de conhecimento suficiente para entender a si próprio por inteiro.
Por esta razão, os verdadeiros motivos que geram determinados atos nem sempre estarão completamente em evidência ou serão identificados e compreendidos facilmente.
Neste pensamento, até inconsistências podem ser percebidas, as quais dizem respeito ao porquê de certas atitudes serem tomadas e a consciência disto.
É possível, para ilustrar, que uma pessoa, mesmo estando convicta sobre as causas que a fizeram proceder de algum modo, descubra após nova análise que estava equivocada quanto a isso.
E é capaz de que alguém, no intuito de encontrar justificativas a fim de fazer o que quer, venha a criar argumentos nobres, bonitos, profundos ou superiores, ainda que estes não sejam autênticos.
Dessa forma, é cabível falar que, como o que nos move, muitas vezes, é difícil de ser definido com exatidão, isto tem a chance de não se adequar dentro de certos julgamentos ou avaliações (por exemplo, se uma ação é correta ou não).
Então, provavelmente não adiantaria – ou sequer seria necessário -grandes explicações referentes ao motivo de se escolher trabalhar com qualquer coisa, inclusive com a dança.
Ou seja, para ser um profissional desta arte basta querer e agir de acordo, sem que se precise esclarecer o que suscitou essa opção ou tentar racionalizá-la (aliás, a dança em si nem exige, e até dispensa isso, em várias situações).
Não obstante a tudo o que foi colocado, é interessante notar que é fundamental que algo interior maior esteja presente em quem deseja ser um trabalhador deste meio ou viver nele intensamente.
Em outras palavras, seguramente o “trabalhar com dança” tem que ter um significado diferente para que alguém resolva se aprofundar nisso, pois sem tal elemento não haveria maneira de prosseguir neste ramo por muito tempo.
Lógico, a dança traz consigo coisas realmente boas de serem adquiridas, como o dinheiro, o destaque, o sucesso ou qualquer desdobramento desse tipo.
Salientando que é impossível dizer que a questão da remuneração, especificamente, não é importante, observando que sem isso não teria como ser um profissional desta área.
No entanto, ainda que a dança venha a propiciar tais itens – os quais são muito bem vindos – sem dúvida estes não serão suficientes (mesmo porque se eles fossem a principal motivação, acredito que haveria meios melhores de obtê-los).
Para viver e trabalhar com a dança, esta, inexplicavelmente, tem que causar alguma emoção que faça uma pessoa ver que ela é o caminho a ser seguido.
Só tendo esta sensação – que pode ser chamada de paixão ou coisa semelhante – é que os fatores ou as características imprescindíveis surgirão para persistir nela sempre, com o que ela continuamente proporcionará.
É com isso, por exemplo, que irá ser adquirida a força, a coragem ou a paciência para enfrentar o ambiente profissional da dança de salão, o qual, às vezes, não é fácil.
Será esse agente interno, também, que fará com que seja realizado o empenho necessário a fim de conquistar o que é preciso para vencer a si próprio, o que é capaz de ser mais difícil que tudo.
Além disso, essa acepção especial sobre esta arte poderá ser, em alguns momentos, o único sentimento que impulsionará infinitas tentativas, quando parecer que todas as situações estão na direção contrária.
Ressaltando que um trabalho de valor, na dança, só será feito se determinados elementos estiverem presentes, como a criatividade, o entusiasmo, a inspiração…
E esse algo a mais é que fará com que grande parte dos pensamentos fiquem voltados neste sentido, provocando, assim, o nascimento destes requisitos que são essenciais.
Somente com amor a dança é que a busca por ela transcenderá uma parcela dos questionamentos a esse respeito, do tipo: se isto está certo ou errado, ou se esta atividade trará retorno ou não.
Isso porque, apenas dessa maneira não faltarão compensações de nenhuma forma, pois a principal recompensa será a de continuar fazendo aquilo que sinceramente se acha – ou se sabe – que tem que ser feito.
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Gostaria de deixar um texto que me influenciou a escrever isso.
Embora ele não fale de dança, especificamente, talvez pela minha paixão por esta arte – igual à de muitas pessoas, que a enxergam em tudo – vi mais dança (e motivação) nele do que qualquer outra coisa.
então queres ser um escritor?
(Charles Bucowski. Tradução: Manuel A. Domingos)
se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.