AGENDE UM HORÁRIO

É certo que muito já foi falado e escrito a respeito da arte no decorrer da história da humanidade.

É certo, também, que inúmeras pessoas competentíssimas – como escritores, filósofos, especialistas em determinadas áreas – já se expressaram excelentemente bem sobre ela, ou esclareceram definitivamente vários dos seus pontos mais técnicos.

No entanto, acredito que os assuntos ligados à arte serão sempre ininteligíveis em sua totalidade, se estes forem delimitados com explicações ou esclarecimentos.

Melhor dizendo, tudo o que for referente à arte, mesmo que possa ser entendido de algum modo, só será captado inteiramente através do sentir ou de uma percepção diferente.

Há, inclusive, frases neste discernimento, que aparentam ser comuns, como: “a arte não existe para ser compreendida, mas sim sentida”; ou “a arte é a forma de expressão impossível de ser alcançada em palavras”…

Aliás, pode ser que o real valor da arte se dê justamente por esta incapacidade de verbalizar por completo o que está se passando interiormente, sendo que ela teria sido criada somente para tanto.

Ou seja, quando as palavras se tornaram insuficientes para exprimir algo, surgiram as maneiras artísticas de se fazer isso, como a música, a dança, a pintura, o teatro, o canto, a escultura…

Perto desse pensamento está, por exemplo, a impossibilidade de descrever os motivos da música ser capaz de despertar praticamente todas as emoções imaginadas, desde uma alegria eufórica até uma sensação da infância extremamente pessoal.

Tampouco daria para explicar porque uma música modifica completamente um ambiente, transformando este em um local de festa, de dança, de meditação, de concentração, de estudo…

Sem contar, também, que não tem como esclarecer a razão de certas músicas fazerem o que parece ser a conexão exata entre a sua forma (a maneira que ela é cantada e executada) e o seu conteúdo.

Em outras palavras, há músicas em que a letra e a melodia desta passam a impressão de ter grande harmonia entre si (a qual – se fosse o caso de oferecer suposições – seria motivada pela identificação com o que é colocado e pela interpretação que é feita).

Além disso, creio que até hoje não foi totalmente desvendada a relação que a música tem com a dança, no aspecto de demonstrar porque determinado som causa um impulso ou uma vontade de se movimentar ritmicamente, e de onde vem isso.

E sendo impossível elucidar estas questões (de um modo cientifico, digamos assim), talvez o que for comentado sobre isso sejam somente palpites, sugestões, mais perguntas, ou venha a se aproximar de algo poético ou filosófico.

Nesse raciocínio, uma das hipóteses é de que a dança seria a tentativa de traduzir com o corpo inteiro o que a música está transmitindo (semelhante ao que foi dito no início a respeito da arte).

Isto teria surgido, teoricamente, devido ao vínculo que o homem tem com a natureza, tendo em vista que é necessário seguir o seu tempo para viver nela.

Próximo a essa idéia, a dança teria se originado com os nossos ancestrais primitivos, os quais, por uma questão de sobrevivência, eram obrigados a se mover de acordo com as emoções geradas pelos sons da época (causados pelo ambiente, pelos animais, por outros seres humanos…).

Pode ser, ainda, que a dança tenha a ver com os antigos rituais de acasalamento, e o que é feito hoje seria meramente isso com milhares de anos de refinamento (ou não é nada disso também).

Por fim, não há como saber por que uma sensação ou uma emoção característica é suscitada quando vemos alguém fazendo o que é capaz de ser definido como “dançar bem”.

Em outros termos, é difícil dizer por qual razão as pessoas que seguem uma série de mandamentos técnicos, ao se movimentarem ao som de uma música, provocam em quem vê uma consciência de que aquilo está sendo bem feito.

Seria, em tese, apenas porque houve uma comunicação entre os nossos órgãos do sentido (visão e audição) por conseguirmos enxergar de uma forma física o que estamos ouvindo.

Ou, se esta explicação ”orgânica” soar muito limitada, o dançar bem estaria relacionado a algum lado transcendental do ser humano, o qual nos faz procurar incessantemente a harmonia e a conexão.

Neste aspecto, isto estaria associado ao próprio sentido da vida, que é o de buscar a beleza, a ligação, a excelência sempre e em tudo, e ter certo contentamento ao presenciar algo desse tipo.

Talvez isso caracterizasse o que se chamaria de evolução, e o fato de querer progredir na dança constantemente seria mais uma tentativa de se aproximar disso.

Enfim…

 

 

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Como o texto anterior ficou um tanto abstrato – no entendimento mais comum e informal desta palavra – gostaria de deixar uma música que também tem algo neste aspecto.

Ela se chama “Águas de Março”, composta por Tom Jobim, e fez um sucesso enorme no Brasil e no mundo (vale a pena buscar maiores informações sobre isso na internet).

É interessante notar que o que é dito nesta música não faz sentido algum em uma primeira análise, tendo em vista que ela traz somente frases diversas, aparentemente desconexas entre si.

Sendo curioso perceber ainda, que embora ela seja cantada de uma forma serena e até alegre (na versão interpretada pelo próprio compositor), não são mencionadas unicamente coisas boas ou prazerosas

Melhor dizendo, mesmo que ela venha a transmitir sentimentos bons devido ao jeito que ela é executada, nela há expressões como: “tombo na ribanceira”, “no rosto, o desgosto”, “corpo na cama”, “espinho na mão”, “corte no pé”…

Para tentar explicar isso, uma das minhas interpretações seria a de que o autor está em uma posição que lhe permite ser o observador de todas as situações, estando, de algum modo, longe ou acima destas.

Ou seja, ele simplesmente está descrevendo os acontecimentos de uma vida – que talvez já tenha até passado – e assim consegue enxergá-los de uma maneira distante e leve.

Por isso, tudo é colocado de uma forma calma, sem julgamento ou avaliação, e é isso que faz com que a letra passe a impressão de ter alguma mensagem mais coerente.

Cabendo ressaltar que esta é a minha visão – e apenas uma delas – observando que não tenho o conhecimento se esta música traz um significado implícito diferente ou se ela foi escrita dentro de um contexto em que tudo isso tem algum outro nexo.

No entanto, ainda que pudesse ter acesso à tais informações, provavelmente escolhesse não ir atrás delas, pois preferiria esta idéia única e individual que esta música tem para mim, sem maiores explicações.

Podendo ser que esta abstração – a qual abre margens para inúmeras acepções – é que faz com que esta música tenha um sentido particular para cada um, e talvez seja esse o motivo do seu grande êxito.

 

Águas de Março

Tom Jobim

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol

É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumueira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto, o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Au, edra, im, minho
Esto, oco, ouco, inho
Aco, idro, ida, ol, oite, orte, aço, zol

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

 

 

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